terça-feira, janeiro 23, 2007

Cena de um dia de nevoeiro



É mais um daqueles dias.

Já nem me lembro do sonho mas não me parece que tenha sido mau, ou sequer pesadelo. Sair da cama é um martírio; o frio pode não ser muito mas entranha-se. Quase é melhor uma pessoa dormir já vestida de véspera!

Como sempre, saí de casa sem tomar o pequeno-almoço. Já ouvi que é um mal geral…pronto, está bem…de algumas pessoas, o facto de não comerem antes de sair de casa de manhã. Comia quando chegasse ao café. Ao sair do prédio, fui brindado com um nevoeiro cerrado e uma humidade cortante. Entrou nas vias respiratórias e gelou-me todinho, de cima a baixo.
O que estava encolhido, mais encolhido ficou e o que não estava…ficou.
É possível que me tenha cruzado com alguém, no curto trajecto até ao carro, mas não dei por nada. A minha visão só alcançava até mais uns dez passos à minha frente. O resto…tudo branquinho. Bonito. Frio.
Dez minutos mais tarde, cheguei ao parque de estacionamento. Num raio de dez metros (era o que conseguia ver), não havia outros carros estacionados e não se via vivalma. Estranho, ou talvez não. Estava um gelo na rua, daí o pessoal ter fugido para a estação do Metro, e os outros carros estariam estacionados mais perto da entrada. Claro, só poderia ser isso!
Estacionei ao lado de outro e desejei ter ficado dentro do carro. A humidade “faz a força” e a força da humidade gelada, é complicada. Difícil de aguentar.
Fora do carro, ajeitei o blusão e o cachecol e preparava-me para arrepiar (é o termo certo) caminho para a entrada da estação. À medida que caminhava, havia um círculo de nevoeiro menos denso que me cercava e avançava a cada passo, como uma auréola. A cada passo, tentava ver mais além da névoa mas era impossível. Para um lado e para o outro, tudo branco. Estranhamente ouvi ao longe um relinchar, primeiro de um e depois de outro cavalo. Esquisito mas só um pouco, porque ali quase ao pé ainda há uma Quinta de cultivo e criação de animais. O som chegaria trazido pela brisa fria que se sentia. Normal, portanto. Continuava a andar e a achar que afinal tinha deixado o carro mais longe que o normal, mas ao mesmo tempo que não – Ainda devo de estar a dormir, só pode!
As coisas começaram a ficar (mais) estranhas quando esperava encontrar a estrada que sempre atravesso, onde passam e param as camionetas, antes da entrada do Metro; agora, era um caminho de terra batida. Franzi o sobrolho, boca aberta, andei e parei a meio. A estrada podia ser de terra batida, mas a entrada para a estação do Metro…estava lá…diferente, mas estava. Avancei e era quase, ou mesmo caricato: a cobertura lembrava uma palhota e degraus cavados na terra, desciam até à mesma curva que ainda no outro dia tinha feito, antes de descer as escadas rolantes. Parado à entrada a olhar lá para baixo, ouvi novamente um relinchar que quase me fez dar um salto, tal não foi o susto e que me tirou o ar dos pulmões, num baque forte e surdo. No lugar onde devia de estar a paragem do dia anterior, estavam dois cavalos com as rédeas amarradas àqueles paus que habitualmente se vêm nos filmes, quando o cavaleiro sai de cima, para o cavalo não fugir.
Tive de fechar a boca para o frio não entrar. Aquilo era surreal. A minha cabeça acompanhava o corpo, girando de um lado para o outro. Um – “Mas…” – saía-me da boca e nada mais. Olhava de volta para o parque, tentando visualizar o carro, em vão; o nevoeiro cobria tudo e trazia um aroma a…árvores…floresta. Calculei que o tempo estava a passar mas sem noção de quantos minutos. Um último olhar para a entrada, juntamente com o frio, fui impelido na sua direcção. Não sabia o que me esperava mas devia de ser melhor do que ficar cá fora.
Degrau a degrau, desci.
As lâmpadas deram lugar a archotes até ao átrio e um cheiro quente, que apenas pude detectar como…animal, enchia o espaço. Uma banca, ao longe, fazia de bilheteira. Parado, de mão direita no bolso e a outra segurando a minha bolsa pequena com os iogurtes e as duas sandes, observei um sujeito vestido com umas roupas…antigas, medievais e cota de malha que saía da banca. Da bilheteira. Tinha comprado a passagem, o bilhete. Com o quê, não sei; não vi, mas parecia que tinha sido isso.
Havia lá em baixo, pelo menos ontem havia, uma papelaria e uma daquelas lojas de café. Agora…hoje, havia só uma banca pequena de fruta, com uma mulher lá dentro a mexer na fruta, compondo-a.
Adormeci ontem e ainda não acordei. Só pode!
Até chegar ao parque, foi tudo dentro da normalidade. Saí de casa, estava nevoeiro, sim, mas era a mesma rua de ontem: a estrada, os prédios, os candeeiros, as lojas, os outros carros…o caminho…foi bem rápido e vendo bem, não me cruzei com mais nenhum carro ou pessoa, e era costume! Mas nem liguei…estava a conduzir, e a conduzir nem vejo quem me cumprimenta no passeio!

A “coisa” correu bem até sair do carro. Depois…parece que recuei no tempo. O alcatrão deu lugar à terra batida; a paragem dos autocarros deu lugar a um abrigo para os cavalos. Cavalos?! E eu ali de calça de ganga, ténis bota de sola grossa, duas Sweet-shirt grossas por causa do frio, e blusão e cachecol. Ah…e a bolsa com o lanche. A matar! Costumava dizer nos dias de nevoeiro, que ainda era capaz de aparecer o D. Sebastião. Afinal…parece que recuei, ainda mais no tempo. Grande porra!
- Mas não podia ser! – Pensei eu, abanando a cabeça de um lado para o outro. Os sentidos despertavam para a realidade. Os odores que flutuavam no ar, eram… – Porra…! – Diferentes! Animais, no Metro!

A mulher continuava a compor a fruta, com grande à-vontade. Olhou na minha direcção e, com um inclinar de cabeça, tipo vénia, sorriu. Fiquei gelado, tal e qual como estava. Abri boca, fechei boca, olhei para trás, não fosse a senhora estar a cumprimentar alguém atrás de mim…apontei para mim e ela fez que sim com a cabeça, sorrindo novamente.
- Ela vê-me. Ela consegue ver-me! – Disse, mal recuperei a voz. Sem saber como, comecei a andar na direcção da banca de fruta. O aspecto do átrio era bastante arcaico, como que acabado de…escavar! O cheiro, e novamente o relinchar de cavalos (que raio!), vinham de baixo. O sítio estava iluminado, assim à média luz. Não daria para ler o jornal sem se dar “cabo da vista”, isso não. Haviam escadas dos dois lados do átrio, dando acesso lá abaixo. – Lá abaixo…? Mas o que…como será aquilo lá em baixo? – Já agora…
Estranho. Muito estranho. Esquisito. Nada normal, isto tudo.
Estava-me a aproximar da senhora (tentando ignorar o sorriso que me enviava), quando me lembrei – Já agora…que pais será este?! Imigrei e não queria e agora já lá estou?...mas onde? – Um sorriso de volta, tive de dar. Pelo menos, nem que fosse por linguagem gestual ou com um desenho (coitadinha da senhora!...COITADINHO DE MIM!)
- Bom dia, Senhor! – Saiu da boca da senhora.
Os olhos, esbugalharam-se-me e a boca acompanhou-os. Os pulmões encheram-se, (e nem sem como!), lentamente de ar, os músculos da face tremelicavam, puxando-se uns aos outros, levando os lábios atrás, que por esta altura já se mexiam para cima e para baixo, deixando escapar um som indeciso que não era nada e que soava a – Aba aba…hãã…baa. – A vendedora, abrandou um pouco o sorriso – Senhor?...Está a sentir-se bem? Quer uma maçã para o caminho? – “Uma maçã para o caminho”; nem acreditava no que ouvia! Nem tão pouco a pergunta…mais o ter feito…em português “normal”. “Normal”, sim…eu já estava por tudo e para dizer a verdade, por nada. Sei lá! Tudo aquilo era surreal. Tinha saído da minha cama, normal; vesti a minha roupa e calçado, normais; fui para o Metro, normalmente no meu carro…normal. Agora…apesar de sentir o chão por baixo dos meus pés, de ter a noção do espaço, ainda não sabia nada em termos de “tempo”. Ainda dava em maluco! Mas era melhor não “amalucar” porque se no meu tempo (“No meu tempo?”), os hospícios eram como eram, naquele…nesta altura (“Mas quando?”), ainda ía parar à fogueira! De repente os músculos do pescoço esticaram-se e engoli em seco. (glup!)
- Bom dia… – Finalmente saiu a retribuição ao cumprimento da vendedora, ainda um pouco a medo – Obrigado, mas não tenho… – disse enquanto apalpava o bolso das calças à procura de moedas. Também, nem sequer sabia qual é a moeda…desta altura, tempo, época…sei lá o que chamar!
- Deixe estar…é para a viagem. Leve, leve – disse num tom amável, sem sequer parecer “por favor”. Enquanto estendia a mão para receber a maçã, disse – …e é melhor apressar-se, ela está quase a sair!
Quase a sair…?” – pensei e disse. – A sair? – Olhando para onde a vendedora de fruta apontava; lá para baixo, onde partia (antes…?), o Metro.
- Sim…a carruagem está quase a sair. Deve de estar por pouco o tocar da sineta.
Carruagem”. “Sineta”. – Lá em baixo. – Disse apontando, já com a maçã na mão. – Sim! Despache-se, Senhor! Ainda a perde!
Assenti, completamente atordoado – Sim…eu vou.

Seria assim que se sentia um pardal que tivesse escapado por pouco a uma chumbada, sentindo apenas o vento?
E fui. Agradeci, respeitosamente à vendedora, inadvertidamente trinquei a maçã e estranhei…que sabia como qualquer outra maçã! – E porque não? Uma maçã, é uma maçã onde quer que se esteja! Mesmo aqui…onde quer que isto seja!
Caminhava, descendo os degraus de terra, espaçados e largos, sem pensar no bilhete. – Eu tenho o Cartão Lisboa Viva, caramba! – Disse para mim mesmo, de boca cheia daquela maçã saborosa. – Lisboa? E isto ainda é a… – Fui interrompido pela visão (mais uma), de outro mundo: duas parelhas de cavalos, estavam atrelados a uma carruagem (“Ela está quase a partir!”), grande e larga e comprida. Enorme. E os cavalos também; grandes. A maçã, caía aos poucos de um canto da boca, enquanto do outro, escorria o suco que, rapidamente sorvi em sofreguidão, limpando com as costas da mão. Custou mas engoli um bocado ainda grande.
A carruagem estava parada aguardando a altura de partir para dentro do mesmo túnel, como acontecia com o Metro. Uma entrada larga em forma de arco, de terra batida e húmida, para evitar o pó. Engenhoso, fosse quem fosse que tivesse pensado nisso. Aos cavalos, era dado no que parecia um balde comprido, comida, largo o suficiente para os dois primeiros e havia outro para os segundos da parelha. “Que visão!”.
A minha observação da cena, foi interrompida por uma voz masculina que se aproximava, de sineta na mão, olhando para mim com desdém. – Se vai entrar, despache-se que vai sair agora. - Engolindo com alguma dificuldade, mais um pedaço grande (antes isso que um beliscão!), – Sair…para onde? - …temendo a resposta. – Baixa-Chiado. – Disse, passando e colocando-se, afastado de mim, à frente dos cavalos.
Ao ouvir aquele nome tão familiar, cuspi a maçã toda e tossi uma tosse de engasgo, inclinado para a frente, de pernas afastadas para não sujar os ténis.
O homem elevou a sineta no ar e agitou-a. O som ecoou na caverna…estação?...partida?...e fez com que eu corresse para a carruagem. Um miúdo com umas roupas esfarrapadas, pernas e cara suja, segurava a porta e um pequeno banco para mais facilmente se subir. Sorriu-me mostrando os dentes sujos e podres, apressando-me com gestos rápidos – Depressa, Senhor…depressa! – Sem pensar, subi e sentei-me, ofegante.
De olhos fechados e cabeça levantada, senti o banco duro, acolchoado a veludo (ou parecido), vermelho e o cheiro da madeira, pinho ou carvalho, sei lá. Um solavanco após a sineta, trouxe-me de volta, de sentidos despertos.
O meu corpo era abanado para a frente e para os lados, ao som do trote dos cavalos. A carruagem tinha à frente um banco corrido, encostado à parede, no meio outro banco de costas para outro igual, frente a outros dois dispostos de igual maneira. Um último banco ficava encostado ao fundo; era o banco dos palermas; onde eu estava.
A carruagem embrenhou-se no túnel, passando por archotes estrategicamente colocados, de tantos em tantos metros. Os solavancos não eram tantos quanto eu poderia esperar por se estar a circular numa estrada de terra, nem tão pouco a lama.
O cenário completa – se com as pessoas. As roupas eram características de uma época medieval: os folhos das saias das mulheres e as tôcas na cabeça, os homens com aquelas bermudas típicas e os folhos esquisitos ao pescoço e nos punhos, uns mais requintados que outros na vestimenta. Havia um de costas para mim, só lhe via a cabeça que devia de ser o tropa da época, pois tinha a cabeça coberta por uma cota de malha, trazia uma lança e um escudo. “Escudo = Dinheiro! Agora lembro-me de que ninguém me pediu o bilhete ou mostrasse o Cartão Lisboa Viva! Estranho (novamente)”. As pessoas, fora a época, comportavam-se como…eu estava habituado…na minha época – “Sinto um nó no estômago, só de pensar nisto: a minha época! Nem sequer sabia ainda onde raio é que eu estava!”; ninguém falava com ninguém, a não ser que se conhecessem, pais e filhos, e amigos. Captei uma conversa de dois tipos que falavam algo acerca de um novo imposto decretado pelo senhor “qualquer coisa”, que não percebi. – Já não bastava o que pagámos no mês anterior! - De resto, os rostos fechados matinais, em caminho para o trabalho. “Isso! Pelo menos sabia que era de manhã.”
Havia (mais), uma coisa em que reparei: as pessoas olhavam para mim, mas não estranhavam a maneira como eu estava vestido; aquelas trocas de olhares, normais numa viagem, num percurso para o trabalho, e fora isso…nada mais. Talvez um pouco de desdém no olhar do tipo que está à minha frente, um franzir do sobrolho e os cantos da boca arqueados para baixo.
O trote dos cavalos continuava, ecoando pelo túnel. Agora estava curioso: qual seria a paragem seguinte? Seria a paragem…normal, do meu…tempo? A resposta não se fez esperar. Uma sineta, parecida com a outra tocou, anunciando a minha resposta, e uma voz, gritou o nome da estação.
Fiquei incrédulo.
Uma claridade, ligeiramente maior que a do túnel aproximava-se, e imediatamente pus a cabeça de fora, invadindo-me um cheiro a terra húmida e a animais. A carruagem parou, mais ou menos a meio. O cais (decidi continuar a chamar-lhe assim), só tinha três pessoas, um casal e outro homem, um pouco afastado destes, mas não muito; afinal, era só uma carruagem, e não um conjunto atrelado umas às outras! A carruagem, ainda tinha lugar para eles. Isso levou-me a pensar que, apesar da rede de transporte (um túnel pelo qual já se tinham cruzado connosco duas carruagens, em sentido oposto), o trabalho que terá dado – “Quem teria construído isto?” –, e provavelmente existiriam outros iguais, a afluência era pouca. Seria “natural”, digo eu, se não fosse hora de ponta, mas eu sabia que era de manhã cedo e que eu podia prová-lo porque tinha acabado de me levantar à já, mais ou menos, quarenta minutos. Por isso…e num dia e numa altura “normal”, a esta hora, não era normal!
Uf! (cansaço). Às vezes, parece complicado!
Entraram os três e sentaram-se. O homem que ía sozinho, trazia uma série de rolos de papel, ou papiro, debaixo do braço, juntamente com um livro grosso e uma pena comprida, entre os dedos; parecia um escritor. O barrete “empenado”, torto na cabeça dava-lhe um ar estupidamente intelectual distraído. O olhar esbugalhado também contribuía para isso. O casalinho já se tinha enroscado e acomodado. A cabeça dela no ombro dele, e ele ternamente com o braço no ombro dela, aconchegando-a. Estavam de costas para mim, mas dava para imaginar o ar apaixonado e cheio de ternura dos dois.
Também me apetecia aconchegar, como muitas vezes fazia mas no caminho de volta, depois de um dia de trabalho, quando o sono aparecia “de fininho”; a diferença é que naquele momento era de manhã e era a ida, não a volta. Costumo andar acompanhado de um livro que leio, por hábito nos transportes, ida e volta, e depois do almoço, até à hora de entrada. Mas hoje, outros pormenores ocupavam e cansavam-me a mente; era tudo diferente, assim…de um dia para o outro. Pestanejei vezes sem conta, esfreguei os olhos na tentativa de quando os abrisse de novo, as coisas fossem diferentes, mas não era só olhar. O olfacto e o tacto, transportavam-me para… aquela época que não faço a mínima ideia qual seja mas que é aquela onde estou.
Sinto a cabeça a latejar. Respiro fundo, tiro os óculos e esfrego a cara com a palma da mão. Com a mão, tapo a boca aberta enquanto olho lá para fora.
A sineta tocou. Precisava de fazer algo, precisava de sair dali!... Nem pensei duas vezes: como que impulsionado por uma mola gigante e potente, saltei do banco em direcção à porta; dei um encontrão no tipo “militar” que deixou cair o escudo e resmungou, juntamente com outras duas pessoas a quem pisei, e não foi ao de leve (!). Queria era sair dali! Cai na plataforma e rapidamente me levantei, não viesse alguém atrás de mim, só que, felizmente não houve tempo para isso. O som do chicote no ar, foi o sinal seguinte da partida da carruagem, levando consigo os rostos indignados, aos solavancos, túnel dentro. Ofegante, sacudi a terra da roupa, olhando para todos os lados à procura de uma saída, quando uma luz (archote?), se acendeu na minha cabeça: o túnel!
A decisão estava tomada. Arrepiei caminho pelo túnel, mas no sentido inverso. Ainda ouvi a voz do tipo da sineta – “Ó senhor…!” Ainda repetiu algo a seguir mas já foi muito sumido, já estava eu túnel a dentro, a correr que nem um desalmado. De alguma maneira, tinha de inverter a situação – Não sei como, mas tenho de fazer algo!
Ao fundo, duas luzes aproximavam-se rapidamente. Tropecei umas quantas vezes na terra e nos trilhos das carruagens, mas por nada deste mundo eu ía parar. Ouvi o trote dos cavalos e sabia que tinha de me desviar; ao “lusco-fusco” só se notaria algo mesmo em cima. Saltei para o outro trilho enquanto me cruzava com a carruagem, mas logo de seguida dei um salto acrobático-atrapalhado de volta, porque havia outra que estava a chegar ao Terminal. Foi quase!... Mas não parei! – Tenho de fazer algo…tenho!
Imagens do dia anterior passaram-me pela cabeça: pais e amigos, colegas de trabalho e pessoas que não conheço de lado nenhum, carros e autocarros…e o Metro. – O Metro! A estação! – Corri com mais vontade ainda.
Outra carruagem passou por mim, já eu vislumbrava as luzes do terminal. O pensamento corria tal como eu – Que fazer? Ir onde? Voltar a casa? E a casa…existia…ainda? – O ar era húmido e pesado e custava a respirar. Já não aguentava mais aquele cheiro!

A plataforma estava à distância de um olhar, tão perto e tão longe. Tive de parar, assim punha os pensamentos em ordem e recuperava um pouco o fôlego. Encostado à parede, longe dos archotes, para passar despercebido, pensei e pensei, e revi todos os minutos desde que saí da cama. – É tudo anormal…isto não pode estar a acontecer-me! Eu sei que acordei! Eu sei… – O desespero tomava conta de mim. Tentei controlá-lo o melhor que pude, respirando compassadamente, inspirando forte e expirando da mesma maneira. Ser racional numa situação daquelas… é só tentar, mesmo.
Mais uma carruagem que passou e uns olhos brilhantes, femininos, parece que fixaram os meus, mesmo no escuro. As pessoas que vi até aquele momento, passavam como se nada de anormal tivesse acontecido, como se aquele fosse o dia-a-dia delas. Falavam umas com as outras, sorriam, cumprimentavam-se e trincavam maçãs…como eu, se me apetecesse comer uma maçã!
- Como seria o dia delas?
Tinha de haver mais gente, para além daquelas que tinha visto; as carruagens que chegavam traziam pessoas, que classifiquei como de diferentes extractos sociais, pelas roupas que vestiam. A vida, aquela vida corria à minha frente. Surgiu-me a imagem de uma ampulheta, com a areia a passar de um lado para o outro por aquela fina passagem, sem possibilidade de voltar atrás. Foi o suficiente.
Levantei-me, respirei fundo e decidi levar o caminho que me separava da plataforma, a passo; apressado, mas a passo. Chegado ao cais, saí pelo mesmo lado de onde à pouco tempo tinha chegado. Estavam o homem da sineta e o miúdo, entretidos com a carruagem. Nem deram por mim. Passei, e subi pelas escadas escavadas na terra, cruzando-me com algumas, mais, pessoas que de à bocado. Não me dirigiram olhares nem nada que se parecesse. Continuei a subir e já se sentia o frio da superfície. O vento empurrava o nevoeiro que cortava e se entranhava nos ossos. Vi uma carruagem que chegou e dela saíram quatro pessoas que correram para a entrada. Passaram e nem deram por mim. Não perdi mais tempo; confiei no meu sentido de orientação e dirigi-me para o parque de estacionamento. O frio e o nevoeiro, dificultavam a progressão mas continuei, mesmo não tendo a certeza de onde tinha deixado o carro. Apressei o passo, tinha a sensação de estar a chegar – …onde, não sei!

Respirava de boca fechada, porque o nevoeiro entrava, asfixiando-me.

Ouvi ruídos em meu redor, ruídos familiares. Estava a andar a passos largos, quando um carro apitou e parou, de faróis apontados quase em cima de mim, tirando-me o fôlego. O condutor olhou para mim, espantado e assustado. Éramos dois. Desviei-me, fixando-o e pedindo desculpa. - Era um carro! – Olhei para o chão de alcatrão, com marcas brancas dos lugares onde estacionar. Mesmo ao lado estava o meu carro. Toquei-lhe, para ver se era verdade. Era!
Ali, naquele momento, um vento mais forte levantou o nevoeiro e pude ver, sem qualquer obstáculo, o parque de estacionamento, a entrada da estação do Metro, os outros carros e pessoas, as camionetas e as paragens. As nuvens rasteiras, subiam cada vez mais alto. Vi pessoas que era costume ver quase todos os dias de manhã. Estacionavam ou saiam dos autocarros e seguiam apressadas, como de costume.

- Mas que raio é que aconteceu aqui? – Olhei em redor. – Terá sido só a mim?!

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