quinta-feira, janeiro 25, 2007

Cenas de um Estudo de Mercado


À porta do prédio, encarei com um rapaz que ia a sair. Afinal enganei-me. Vinha, era à procura das pessoas, com um papel na mão contendo os nomes dos sete galardoados com o privilégio de comparecer num Estudo de Mercado. – Uau… Melga! – Pensei que o rapazito fosse sair do prédio, e fiz um compasso de espera haver se o moço saia ou não.
Ficaram duas figurinhas, uma segurando na porta aberta e a outra especada à espera. Fixei o olhar, como quem pergunta com alguma impaciência – Ou sais…ou seguras a portita, e me deixas entrar! Isso é que não é nada, puto! - Durou uns segunditos, só. Perguntou-me se eu ia para o Estudo de Mercado – Sim, vou. – Respondi, parado, ali ao frio. O puto nem sequer me convidou para entrar. “Esxxxtúpido!”
- E o nome, é… – Eu disse o nome, assinalou numa folhita pequena e indicou-me os elevadores. Pediu-me, encarecidamente para quando saísse do elevador, fechar as portas de correr porque senão o elevador ficava preso. – Concerteza. Tudo bem! - Subi uns degrauzitos e o primeiro elevador tinha as luzes dos dois botões ligadas. Bastou uns segundos para “ver a coisa”. – Portanto, a luzinha acesa no 5º… o elevador está lá em cima! A luz de chamada acesa… porta aberta.
- Pois!
O moço deve de ter reparado que, por poucos segundos fiquei parado à porta do elevador, e disse que havia outro – … o de serviço, a seguir àquela porta, ali. – E que deveria de ter a mesma atenção com as portas de correr. “Pois, concerteza. Se nem quem entrou antes o fez… Mas fica a intenção. Bonito!”
Passei pela outra porta e para meu espanto, vi que as mesmas luzes estavam acesas, o que só podia indicar uma coisa. ‘Tá bem…duas – “O ascensor aquietou-se pelo 5º andar; e qual terá sido a besta que não fechou as portitas de correr. Ai se eu a vejo!” – Fiquei, mais uns segundos que da outra vez, junto às portas, olhando de soslaio as escadas, que me fazia aumentar ainda mais a dor que sentia no joelho, intensificada pelo frio da rua. – Hum…! Lá terá de ser.

No fim da escalada pela escada de serviço, tive a prova do crime ao verificar, antes dos três últimos degraus, uma luz branca que vinha da porta do elevador. Completamente aberta, escancarada. Faltava a besta.

Toquei à campainha, recebeu-me uma senhora baixinha, de mais ou menos metro e meio, toda sorridente. – Olá, boa noite…entre, entre…hihihi! – Segui o gnomo risonho até à sala, onde ainda estavam só três pessoas: um Marreco Cabeçudo Sorridente, uma Caixa D’óculos Intelectual – (hum…Gira!) –, E um Anafado Bolachudo e com ar de frete. Tinha encontrado a “besta “. – “Provavelmente saíste, tu e o teu grande cú, e qual porta qual quê!”.

A mesa, branca e comprida, estava bem composta: uma garrafa de água, um pacote de Ice-Tea, copos e três pratinhos com bolachas de água e sal, waffers e mini-donuts de “chiculate”. – Baril!
Sentei-me e…silêncio!
O Anafado Bolachudo mexia no telemóvel, todo refastelado na cadeira com ar de frete. Houve conversa de circunstância com a Inteligente dos Óculos e o Marreco Sorridente, daquelas conversas mesmo…de circunstância. Só faltava (!), que as pessoas se apresentassem – Olá, o meu nome é “X”, e faço isto ou aquilo. – “Já agora (frete)! O gnomo sorridente ainda entrou na sala umas duas vezes, para depois vir a moderadora dizer que se tinha de esperar um pouco pelas outras pessoas. Olhei para as cadeiras, vendo que seriam mais quatro alminhas que estavam para chegar.
Demorou, mais ou menos uns 15 minutos para as outras pessoas chegarem; a primeira foi uma rapariga, sorridente, de olhos esbugalhados, fanhosa, deu um “bôa nôîte” com sotaque açoriano. Quando a ouvi, esbugalhei (eu) os olhos e pensei – “Fanhosa e açoriana! Quais seriam as probabilidades das duas coisas se juntarem, numa pessoa só?” – E sorri, a olhar para o chão.
Outro chegou e pouco depois, também a pessoa que faltava. Ele, matarroano, distraído e fanhoso (outro, mas este do continente), também sorridente; a outra, uma rapariga, aspirante a Jet-Set, loura com ar sério, e tagarela que se fartava. Ela e o Anafado fariam uma boa dupla.

Já os estou a imaginar, ao estilo Super-Herói: roupa justa, coladinha ao corpito, um “S” grande no peito de cada um, lado a lado numa pose para a fotografia, só se vendo os olhinhos.

E tal e coiso… Começou a reunião.
O que nós achávamos disto, o que cada um achava daquilo, que tal esta frase, como poríamos a frase, etc. Era engraçado ver o que cada um achava. Para mim, estava quase tudo bem, dêem-me que eu aceito. Até as bolachinhas nos pratinhos! Tinha que despachar-me, senão o Fanhoso (o do continente, do arquipélago era “uma” fanhosa), comia-las todinhas! Queria eram as bolachinhas.
E o tipo comia…!

Cada um dava a sua opinião. Para o Anafado Bolachudo e para o Marreco, era tudo “frete” – É isso assim mesmo, mais nada! – Dizia o primeiro, para depois o corcunda rematar – É, pois claro. De outra maneira, é muito! E seríamos nós a dar o dinheiro? – Acentuando as palavras. Queriam despachar aquilo, “mai nada”.
(Risos)
Conversa, discussão, barulho, braços no ar a pedir a palavra.
A Fanhosa Açoriana salientava a importância disto e daquilo, com uma certeza gritante difícil de entender, ao qual o nervoso também não ajudava, notando-se no discurso, tipo as linhas a tracejado das estradas – Êh…Ê, pôrquê… Ê aquela coisa… Ê cômê… Só pôde ser assîm!
A mim estava tudo bem. O pior, era quando se chegava ao fim das possibilidades e tinha de escolher “só” uma. Mas, está bem! Só dava era vontade de rir.
A intelectual dos óculos queria eram as viagens. Se havia viagem, ao estrangeiro, claro está, então ‘tá bem!
(Mais risos)
A Aspirante ao Jet-Set, falava duma maneira mui eloquente, bem faladeira, com palavras caras, tombando a cabeça e o cabelo, note-se, acompanhado com um movimento da mão, como se estivesse a escorrer a água depois do banho. Ora para um lado, ora para o outro.
A dada altura, no meio de uma conversa bem barulhenta, e depois do gnomo ter entrado para renovar o stock de guloseimas, a moderadora pergunta ao Fanhoso Distraído que foi mesmo, mas mesmo apanhado em flagrante delito: completamente “noutro universo”, trincando vagarosamente uma bolachinha, de dentadinha em dentadinha, mirando o vazio, quando ouviu o seu nome e a pergunta – O que é que acha? -, Deu um salto, virando-se na direcção da moderadora e, soltando migalhas para fora da boca, algumas dependuradas nos lábios finos, e disse – … do quê?
Não resisti, e em fracções de segundo, soltei (pelo menos, eu), acompanhado pelo resto da assistência, uma gargalhada, bem puxada e sonora, que durou mais que uns segundos.

Era giro.

Foi giro.

Uns queriam que aquilo acabasse depressa (foram duas horas e picos), outras queriam algo com viagens, os fanhosos soltavam perdigotos ao falar, e ela então, bem precisava de um tradutor (!!!). Eu… “’tasse beeem!”
Ataquei as bolachinhas, e logo de seguida o resto da malta, o que levou a uma nova entrada em cena do nosso gnomo de estimação. E a festança continua.

Acabou, chegou ao fim, todos receberam a prendinha…


… Fim.

terça-feira, janeiro 23, 2007

Cena de um dia de nevoeiro



É mais um daqueles dias.

Já nem me lembro do sonho mas não me parece que tenha sido mau, ou sequer pesadelo. Sair da cama é um martírio; o frio pode não ser muito mas entranha-se. Quase é melhor uma pessoa dormir já vestida de véspera!

Como sempre, saí de casa sem tomar o pequeno-almoço. Já ouvi que é um mal geral…pronto, está bem…de algumas pessoas, o facto de não comerem antes de sair de casa de manhã. Comia quando chegasse ao café. Ao sair do prédio, fui brindado com um nevoeiro cerrado e uma humidade cortante. Entrou nas vias respiratórias e gelou-me todinho, de cima a baixo.
O que estava encolhido, mais encolhido ficou e o que não estava…ficou.
É possível que me tenha cruzado com alguém, no curto trajecto até ao carro, mas não dei por nada. A minha visão só alcançava até mais uns dez passos à minha frente. O resto…tudo branquinho. Bonito. Frio.
Dez minutos mais tarde, cheguei ao parque de estacionamento. Num raio de dez metros (era o que conseguia ver), não havia outros carros estacionados e não se via vivalma. Estranho, ou talvez não. Estava um gelo na rua, daí o pessoal ter fugido para a estação do Metro, e os outros carros estariam estacionados mais perto da entrada. Claro, só poderia ser isso!
Estacionei ao lado de outro e desejei ter ficado dentro do carro. A humidade “faz a força” e a força da humidade gelada, é complicada. Difícil de aguentar.
Fora do carro, ajeitei o blusão e o cachecol e preparava-me para arrepiar (é o termo certo) caminho para a entrada da estação. À medida que caminhava, havia um círculo de nevoeiro menos denso que me cercava e avançava a cada passo, como uma auréola. A cada passo, tentava ver mais além da névoa mas era impossível. Para um lado e para o outro, tudo branco. Estranhamente ouvi ao longe um relinchar, primeiro de um e depois de outro cavalo. Esquisito mas só um pouco, porque ali quase ao pé ainda há uma Quinta de cultivo e criação de animais. O som chegaria trazido pela brisa fria que se sentia. Normal, portanto. Continuava a andar e a achar que afinal tinha deixado o carro mais longe que o normal, mas ao mesmo tempo que não – Ainda devo de estar a dormir, só pode!
As coisas começaram a ficar (mais) estranhas quando esperava encontrar a estrada que sempre atravesso, onde passam e param as camionetas, antes da entrada do Metro; agora, era um caminho de terra batida. Franzi o sobrolho, boca aberta, andei e parei a meio. A estrada podia ser de terra batida, mas a entrada para a estação do Metro…estava lá…diferente, mas estava. Avancei e era quase, ou mesmo caricato: a cobertura lembrava uma palhota e degraus cavados na terra, desciam até à mesma curva que ainda no outro dia tinha feito, antes de descer as escadas rolantes. Parado à entrada a olhar lá para baixo, ouvi novamente um relinchar que quase me fez dar um salto, tal não foi o susto e que me tirou o ar dos pulmões, num baque forte e surdo. No lugar onde devia de estar a paragem do dia anterior, estavam dois cavalos com as rédeas amarradas àqueles paus que habitualmente se vêm nos filmes, quando o cavaleiro sai de cima, para o cavalo não fugir.
Tive de fechar a boca para o frio não entrar. Aquilo era surreal. A minha cabeça acompanhava o corpo, girando de um lado para o outro. Um – “Mas…” – saía-me da boca e nada mais. Olhava de volta para o parque, tentando visualizar o carro, em vão; o nevoeiro cobria tudo e trazia um aroma a…árvores…floresta. Calculei que o tempo estava a passar mas sem noção de quantos minutos. Um último olhar para a entrada, juntamente com o frio, fui impelido na sua direcção. Não sabia o que me esperava mas devia de ser melhor do que ficar cá fora.
Degrau a degrau, desci.
As lâmpadas deram lugar a archotes até ao átrio e um cheiro quente, que apenas pude detectar como…animal, enchia o espaço. Uma banca, ao longe, fazia de bilheteira. Parado, de mão direita no bolso e a outra segurando a minha bolsa pequena com os iogurtes e as duas sandes, observei um sujeito vestido com umas roupas…antigas, medievais e cota de malha que saía da banca. Da bilheteira. Tinha comprado a passagem, o bilhete. Com o quê, não sei; não vi, mas parecia que tinha sido isso.
Havia lá em baixo, pelo menos ontem havia, uma papelaria e uma daquelas lojas de café. Agora…hoje, havia só uma banca pequena de fruta, com uma mulher lá dentro a mexer na fruta, compondo-a.
Adormeci ontem e ainda não acordei. Só pode!
Até chegar ao parque, foi tudo dentro da normalidade. Saí de casa, estava nevoeiro, sim, mas era a mesma rua de ontem: a estrada, os prédios, os candeeiros, as lojas, os outros carros…o caminho…foi bem rápido e vendo bem, não me cruzei com mais nenhum carro ou pessoa, e era costume! Mas nem liguei…estava a conduzir, e a conduzir nem vejo quem me cumprimenta no passeio!

A “coisa” correu bem até sair do carro. Depois…parece que recuei no tempo. O alcatrão deu lugar à terra batida; a paragem dos autocarros deu lugar a um abrigo para os cavalos. Cavalos?! E eu ali de calça de ganga, ténis bota de sola grossa, duas Sweet-shirt grossas por causa do frio, e blusão e cachecol. Ah…e a bolsa com o lanche. A matar! Costumava dizer nos dias de nevoeiro, que ainda era capaz de aparecer o D. Sebastião. Afinal…parece que recuei, ainda mais no tempo. Grande porra!
- Mas não podia ser! – Pensei eu, abanando a cabeça de um lado para o outro. Os sentidos despertavam para a realidade. Os odores que flutuavam no ar, eram… – Porra…! – Diferentes! Animais, no Metro!

A mulher continuava a compor a fruta, com grande à-vontade. Olhou na minha direcção e, com um inclinar de cabeça, tipo vénia, sorriu. Fiquei gelado, tal e qual como estava. Abri boca, fechei boca, olhei para trás, não fosse a senhora estar a cumprimentar alguém atrás de mim…apontei para mim e ela fez que sim com a cabeça, sorrindo novamente.
- Ela vê-me. Ela consegue ver-me! – Disse, mal recuperei a voz. Sem saber como, comecei a andar na direcção da banca de fruta. O aspecto do átrio era bastante arcaico, como que acabado de…escavar! O cheiro, e novamente o relinchar de cavalos (que raio!), vinham de baixo. O sítio estava iluminado, assim à média luz. Não daria para ler o jornal sem se dar “cabo da vista”, isso não. Haviam escadas dos dois lados do átrio, dando acesso lá abaixo. – Lá abaixo…? Mas o que…como será aquilo lá em baixo? – Já agora…
Estranho. Muito estranho. Esquisito. Nada normal, isto tudo.
Estava-me a aproximar da senhora (tentando ignorar o sorriso que me enviava), quando me lembrei – Já agora…que pais será este?! Imigrei e não queria e agora já lá estou?...mas onde? – Um sorriso de volta, tive de dar. Pelo menos, nem que fosse por linguagem gestual ou com um desenho (coitadinha da senhora!...COITADINHO DE MIM!)
- Bom dia, Senhor! – Saiu da boca da senhora.
Os olhos, esbugalharam-se-me e a boca acompanhou-os. Os pulmões encheram-se, (e nem sem como!), lentamente de ar, os músculos da face tremelicavam, puxando-se uns aos outros, levando os lábios atrás, que por esta altura já se mexiam para cima e para baixo, deixando escapar um som indeciso que não era nada e que soava a – Aba aba…hãã…baa. – A vendedora, abrandou um pouco o sorriso – Senhor?...Está a sentir-se bem? Quer uma maçã para o caminho? – “Uma maçã para o caminho”; nem acreditava no que ouvia! Nem tão pouco a pergunta…mais o ter feito…em português “normal”. “Normal”, sim…eu já estava por tudo e para dizer a verdade, por nada. Sei lá! Tudo aquilo era surreal. Tinha saído da minha cama, normal; vesti a minha roupa e calçado, normais; fui para o Metro, normalmente no meu carro…normal. Agora…apesar de sentir o chão por baixo dos meus pés, de ter a noção do espaço, ainda não sabia nada em termos de “tempo”. Ainda dava em maluco! Mas era melhor não “amalucar” porque se no meu tempo (“No meu tempo?”), os hospícios eram como eram, naquele…nesta altura (“Mas quando?”), ainda ía parar à fogueira! De repente os músculos do pescoço esticaram-se e engoli em seco. (glup!)
- Bom dia… – Finalmente saiu a retribuição ao cumprimento da vendedora, ainda um pouco a medo – Obrigado, mas não tenho… – disse enquanto apalpava o bolso das calças à procura de moedas. Também, nem sequer sabia qual é a moeda…desta altura, tempo, época…sei lá o que chamar!
- Deixe estar…é para a viagem. Leve, leve – disse num tom amável, sem sequer parecer “por favor”. Enquanto estendia a mão para receber a maçã, disse – …e é melhor apressar-se, ela está quase a sair!
Quase a sair…?” – pensei e disse. – A sair? – Olhando para onde a vendedora de fruta apontava; lá para baixo, onde partia (antes…?), o Metro.
- Sim…a carruagem está quase a sair. Deve de estar por pouco o tocar da sineta.
Carruagem”. “Sineta”. – Lá em baixo. – Disse apontando, já com a maçã na mão. – Sim! Despache-se, Senhor! Ainda a perde!
Assenti, completamente atordoado – Sim…eu vou.

Seria assim que se sentia um pardal que tivesse escapado por pouco a uma chumbada, sentindo apenas o vento?
E fui. Agradeci, respeitosamente à vendedora, inadvertidamente trinquei a maçã e estranhei…que sabia como qualquer outra maçã! – E porque não? Uma maçã, é uma maçã onde quer que se esteja! Mesmo aqui…onde quer que isto seja!
Caminhava, descendo os degraus de terra, espaçados e largos, sem pensar no bilhete. – Eu tenho o Cartão Lisboa Viva, caramba! – Disse para mim mesmo, de boca cheia daquela maçã saborosa. – Lisboa? E isto ainda é a… – Fui interrompido pela visão (mais uma), de outro mundo: duas parelhas de cavalos, estavam atrelados a uma carruagem (“Ela está quase a partir!”), grande e larga e comprida. Enorme. E os cavalos também; grandes. A maçã, caía aos poucos de um canto da boca, enquanto do outro, escorria o suco que, rapidamente sorvi em sofreguidão, limpando com as costas da mão. Custou mas engoli um bocado ainda grande.
A carruagem estava parada aguardando a altura de partir para dentro do mesmo túnel, como acontecia com o Metro. Uma entrada larga em forma de arco, de terra batida e húmida, para evitar o pó. Engenhoso, fosse quem fosse que tivesse pensado nisso. Aos cavalos, era dado no que parecia um balde comprido, comida, largo o suficiente para os dois primeiros e havia outro para os segundos da parelha. “Que visão!”.
A minha observação da cena, foi interrompida por uma voz masculina que se aproximava, de sineta na mão, olhando para mim com desdém. – Se vai entrar, despache-se que vai sair agora. - Engolindo com alguma dificuldade, mais um pedaço grande (antes isso que um beliscão!), – Sair…para onde? - …temendo a resposta. – Baixa-Chiado. – Disse, passando e colocando-se, afastado de mim, à frente dos cavalos.
Ao ouvir aquele nome tão familiar, cuspi a maçã toda e tossi uma tosse de engasgo, inclinado para a frente, de pernas afastadas para não sujar os ténis.
O homem elevou a sineta no ar e agitou-a. O som ecoou na caverna…estação?...partida?...e fez com que eu corresse para a carruagem. Um miúdo com umas roupas esfarrapadas, pernas e cara suja, segurava a porta e um pequeno banco para mais facilmente se subir. Sorriu-me mostrando os dentes sujos e podres, apressando-me com gestos rápidos – Depressa, Senhor…depressa! – Sem pensar, subi e sentei-me, ofegante.
De olhos fechados e cabeça levantada, senti o banco duro, acolchoado a veludo (ou parecido), vermelho e o cheiro da madeira, pinho ou carvalho, sei lá. Um solavanco após a sineta, trouxe-me de volta, de sentidos despertos.
O meu corpo era abanado para a frente e para os lados, ao som do trote dos cavalos. A carruagem tinha à frente um banco corrido, encostado à parede, no meio outro banco de costas para outro igual, frente a outros dois dispostos de igual maneira. Um último banco ficava encostado ao fundo; era o banco dos palermas; onde eu estava.
A carruagem embrenhou-se no túnel, passando por archotes estrategicamente colocados, de tantos em tantos metros. Os solavancos não eram tantos quanto eu poderia esperar por se estar a circular numa estrada de terra, nem tão pouco a lama.
O cenário completa – se com as pessoas. As roupas eram características de uma época medieval: os folhos das saias das mulheres e as tôcas na cabeça, os homens com aquelas bermudas típicas e os folhos esquisitos ao pescoço e nos punhos, uns mais requintados que outros na vestimenta. Havia um de costas para mim, só lhe via a cabeça que devia de ser o tropa da época, pois tinha a cabeça coberta por uma cota de malha, trazia uma lança e um escudo. “Escudo = Dinheiro! Agora lembro-me de que ninguém me pediu o bilhete ou mostrasse o Cartão Lisboa Viva! Estranho (novamente)”. As pessoas, fora a época, comportavam-se como…eu estava habituado…na minha época – “Sinto um nó no estômago, só de pensar nisto: a minha época! Nem sequer sabia ainda onde raio é que eu estava!”; ninguém falava com ninguém, a não ser que se conhecessem, pais e filhos, e amigos. Captei uma conversa de dois tipos que falavam algo acerca de um novo imposto decretado pelo senhor “qualquer coisa”, que não percebi. – Já não bastava o que pagámos no mês anterior! - De resto, os rostos fechados matinais, em caminho para o trabalho. “Isso! Pelo menos sabia que era de manhã.”
Havia (mais), uma coisa em que reparei: as pessoas olhavam para mim, mas não estranhavam a maneira como eu estava vestido; aquelas trocas de olhares, normais numa viagem, num percurso para o trabalho, e fora isso…nada mais. Talvez um pouco de desdém no olhar do tipo que está à minha frente, um franzir do sobrolho e os cantos da boca arqueados para baixo.
O trote dos cavalos continuava, ecoando pelo túnel. Agora estava curioso: qual seria a paragem seguinte? Seria a paragem…normal, do meu…tempo? A resposta não se fez esperar. Uma sineta, parecida com a outra tocou, anunciando a minha resposta, e uma voz, gritou o nome da estação.
Fiquei incrédulo.
Uma claridade, ligeiramente maior que a do túnel aproximava-se, e imediatamente pus a cabeça de fora, invadindo-me um cheiro a terra húmida e a animais. A carruagem parou, mais ou menos a meio. O cais (decidi continuar a chamar-lhe assim), só tinha três pessoas, um casal e outro homem, um pouco afastado destes, mas não muito; afinal, era só uma carruagem, e não um conjunto atrelado umas às outras! A carruagem, ainda tinha lugar para eles. Isso levou-me a pensar que, apesar da rede de transporte (um túnel pelo qual já se tinham cruzado connosco duas carruagens, em sentido oposto), o trabalho que terá dado – “Quem teria construído isto?” –, e provavelmente existiriam outros iguais, a afluência era pouca. Seria “natural”, digo eu, se não fosse hora de ponta, mas eu sabia que era de manhã cedo e que eu podia prová-lo porque tinha acabado de me levantar à já, mais ou menos, quarenta minutos. Por isso…e num dia e numa altura “normal”, a esta hora, não era normal!
Uf! (cansaço). Às vezes, parece complicado!
Entraram os três e sentaram-se. O homem que ía sozinho, trazia uma série de rolos de papel, ou papiro, debaixo do braço, juntamente com um livro grosso e uma pena comprida, entre os dedos; parecia um escritor. O barrete “empenado”, torto na cabeça dava-lhe um ar estupidamente intelectual distraído. O olhar esbugalhado também contribuía para isso. O casalinho já se tinha enroscado e acomodado. A cabeça dela no ombro dele, e ele ternamente com o braço no ombro dela, aconchegando-a. Estavam de costas para mim, mas dava para imaginar o ar apaixonado e cheio de ternura dos dois.
Também me apetecia aconchegar, como muitas vezes fazia mas no caminho de volta, depois de um dia de trabalho, quando o sono aparecia “de fininho”; a diferença é que naquele momento era de manhã e era a ida, não a volta. Costumo andar acompanhado de um livro que leio, por hábito nos transportes, ida e volta, e depois do almoço, até à hora de entrada. Mas hoje, outros pormenores ocupavam e cansavam-me a mente; era tudo diferente, assim…de um dia para o outro. Pestanejei vezes sem conta, esfreguei os olhos na tentativa de quando os abrisse de novo, as coisas fossem diferentes, mas não era só olhar. O olfacto e o tacto, transportavam-me para… aquela época que não faço a mínima ideia qual seja mas que é aquela onde estou.
Sinto a cabeça a latejar. Respiro fundo, tiro os óculos e esfrego a cara com a palma da mão. Com a mão, tapo a boca aberta enquanto olho lá para fora.
A sineta tocou. Precisava de fazer algo, precisava de sair dali!... Nem pensei duas vezes: como que impulsionado por uma mola gigante e potente, saltei do banco em direcção à porta; dei um encontrão no tipo “militar” que deixou cair o escudo e resmungou, juntamente com outras duas pessoas a quem pisei, e não foi ao de leve (!). Queria era sair dali! Cai na plataforma e rapidamente me levantei, não viesse alguém atrás de mim, só que, felizmente não houve tempo para isso. O som do chicote no ar, foi o sinal seguinte da partida da carruagem, levando consigo os rostos indignados, aos solavancos, túnel dentro. Ofegante, sacudi a terra da roupa, olhando para todos os lados à procura de uma saída, quando uma luz (archote?), se acendeu na minha cabeça: o túnel!
A decisão estava tomada. Arrepiei caminho pelo túnel, mas no sentido inverso. Ainda ouvi a voz do tipo da sineta – “Ó senhor…!” Ainda repetiu algo a seguir mas já foi muito sumido, já estava eu túnel a dentro, a correr que nem um desalmado. De alguma maneira, tinha de inverter a situação – Não sei como, mas tenho de fazer algo!
Ao fundo, duas luzes aproximavam-se rapidamente. Tropecei umas quantas vezes na terra e nos trilhos das carruagens, mas por nada deste mundo eu ía parar. Ouvi o trote dos cavalos e sabia que tinha de me desviar; ao “lusco-fusco” só se notaria algo mesmo em cima. Saltei para o outro trilho enquanto me cruzava com a carruagem, mas logo de seguida dei um salto acrobático-atrapalhado de volta, porque havia outra que estava a chegar ao Terminal. Foi quase!... Mas não parei! – Tenho de fazer algo…tenho!
Imagens do dia anterior passaram-me pela cabeça: pais e amigos, colegas de trabalho e pessoas que não conheço de lado nenhum, carros e autocarros…e o Metro. – O Metro! A estação! – Corri com mais vontade ainda.
Outra carruagem passou por mim, já eu vislumbrava as luzes do terminal. O pensamento corria tal como eu – Que fazer? Ir onde? Voltar a casa? E a casa…existia…ainda? – O ar era húmido e pesado e custava a respirar. Já não aguentava mais aquele cheiro!

A plataforma estava à distância de um olhar, tão perto e tão longe. Tive de parar, assim punha os pensamentos em ordem e recuperava um pouco o fôlego. Encostado à parede, longe dos archotes, para passar despercebido, pensei e pensei, e revi todos os minutos desde que saí da cama. – É tudo anormal…isto não pode estar a acontecer-me! Eu sei que acordei! Eu sei… – O desespero tomava conta de mim. Tentei controlá-lo o melhor que pude, respirando compassadamente, inspirando forte e expirando da mesma maneira. Ser racional numa situação daquelas… é só tentar, mesmo.
Mais uma carruagem que passou e uns olhos brilhantes, femininos, parece que fixaram os meus, mesmo no escuro. As pessoas que vi até aquele momento, passavam como se nada de anormal tivesse acontecido, como se aquele fosse o dia-a-dia delas. Falavam umas com as outras, sorriam, cumprimentavam-se e trincavam maçãs…como eu, se me apetecesse comer uma maçã!
- Como seria o dia delas?
Tinha de haver mais gente, para além daquelas que tinha visto; as carruagens que chegavam traziam pessoas, que classifiquei como de diferentes extractos sociais, pelas roupas que vestiam. A vida, aquela vida corria à minha frente. Surgiu-me a imagem de uma ampulheta, com a areia a passar de um lado para o outro por aquela fina passagem, sem possibilidade de voltar atrás. Foi o suficiente.
Levantei-me, respirei fundo e decidi levar o caminho que me separava da plataforma, a passo; apressado, mas a passo. Chegado ao cais, saí pelo mesmo lado de onde à pouco tempo tinha chegado. Estavam o homem da sineta e o miúdo, entretidos com a carruagem. Nem deram por mim. Passei, e subi pelas escadas escavadas na terra, cruzando-me com algumas, mais, pessoas que de à bocado. Não me dirigiram olhares nem nada que se parecesse. Continuei a subir e já se sentia o frio da superfície. O vento empurrava o nevoeiro que cortava e se entranhava nos ossos. Vi uma carruagem que chegou e dela saíram quatro pessoas que correram para a entrada. Passaram e nem deram por mim. Não perdi mais tempo; confiei no meu sentido de orientação e dirigi-me para o parque de estacionamento. O frio e o nevoeiro, dificultavam a progressão mas continuei, mesmo não tendo a certeza de onde tinha deixado o carro. Apressei o passo, tinha a sensação de estar a chegar – …onde, não sei!

Respirava de boca fechada, porque o nevoeiro entrava, asfixiando-me.

Ouvi ruídos em meu redor, ruídos familiares. Estava a andar a passos largos, quando um carro apitou e parou, de faróis apontados quase em cima de mim, tirando-me o fôlego. O condutor olhou para mim, espantado e assustado. Éramos dois. Desviei-me, fixando-o e pedindo desculpa. - Era um carro! – Olhei para o chão de alcatrão, com marcas brancas dos lugares onde estacionar. Mesmo ao lado estava o meu carro. Toquei-lhe, para ver se era verdade. Era!
Ali, naquele momento, um vento mais forte levantou o nevoeiro e pude ver, sem qualquer obstáculo, o parque de estacionamento, a entrada da estação do Metro, os outros carros e pessoas, as camionetas e as paragens. As nuvens rasteiras, subiam cada vez mais alto. Vi pessoas que era costume ver quase todos os dias de manhã. Estacionavam ou saiam dos autocarros e seguiam apressadas, como de costume.

- Mas que raio é que aconteceu aqui? – Olhei em redor. – Terá sido só a mim?!

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Partidas que as memórias pregam




Ninguém fica indiferente ao cair do pano.
Não há lágrima que se consiga evitar.
Fico sozinho no escuro frio e duro.
A ouvir sons de outrora, coisas que não se esquecem.

O último beijo vem à memória.
Fechar os olhos não ajuda,
Piora.
Cenas passam de fugida.

Amar com coração, vontade, querer.
Tínhamos tudo.
Tudo por Amor.
Sonhar mais um dia.

Mil palavras não definem o que senti.
Sinto.

Noticias do fundo chegam, ao segundo.
É um dia mau, só mais um.
Fecho os olhos e vejo-te a olhar para mim.

Já respirava outra vez.
Dá-me ar.
Fogo brando.
Fogo intenso.

Amor, disse.
Amor, perdi.
Coração frio,
Coração vazio.

Teimosia, não falar.
Diz-me, gota a gota,
Pequenos pormenores,
Para perceber.
Saber. Explicar.

Ser suspeito, é o mundo do avesso.
Não falar, é perder aos poucos,
Ou tudo de uma vez.

É mentira.

Faria Tudo por Amor,
A ti e a mais ninguém.
(Quando eras tu)
Chama.

És o que és;
Sou o que sou.
Respiro um minuto de cada vez.
A tua respiração é que não sinto.

Queria que chovesse em cima de mim,
E que levasse as minhas memórias.
Assim, esquecia-me
Para não me lembrar.

Falar com os olhos.
Gritar em silêncio o Amor.
Nenhum abraço era mais forte que
Aquele quando olhava para ti.

Sorriso e piscar de olhos.
Piscar de olhos e sorriso.
Abraço virtual.
Amor.

É para isto que vivemos?
Para sofrer ao não falar?
Para perder
E não mais encontrar?

Um último suspiro
Que dure a vida inteira.
O resto da vida.

De braços abertos
De olhos fechados
A carta que nunca (te) escrevi.

É este o fim?
Não mais encontrar…?
...Q U E R O !

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Mas caramba...estava frio de manhã!




Mais um dia, mais uma greve.

O frio da manhã faz doer as rótulas, sem dó nem piedade.
Fui eu a chegar e o “alternativo” a sair. No parque, um panorama diferente de há um dia atrás: “alternativos” estacionados uns atrás dos outros, até numa estrada de acesso à rotunda. Não esperei nem um segundo. Parecia que estava à minha espera para arrepiar caminho.
Agora, tive mais sorte que noutra greve anterior, ainda no ano passado em que esperei meia hora ao frio. Já não sei se o mais impressionante foi o “alternativo”, que viajou em parelha com o “colega motorista”, porque não conheciam o caminho – Eu vou por onde ele for! - Ambos matarroanos de gema (não vi o outro, mas de certeza que era irmão gémeo!), o frio lá dentro mais intenso que do lado de fora, ou “apenas” (note-se), mais um caminho alternativo, diferente dos outros “alternativos”. Nota, ainda para uma impressionante quantidade de paragens / estações falhadas.
Num rali Lisboa – Dakar, a falha de um Controlo de Passagem leva a desclassificação; neste caso foram “só” três! E fui eu que achei mal, logo eu que entro e saio nas Estações Terminais. Noutras greves, outras tantas variações no caminho, tornando menos monótona a viagem “pára-arranca” até ao Rossio.
Os cinco minutos de espera ao frio pareceram sete minutos de eternidade gelada. Não fui à fresca, mas caramba…estava frio! A paisagem na planície era bonita, para um parque de estacionamento – uma neblina cerrada e baixa quase assentava na estrada, prédios e casas ao longe e terrenos circundantes, outrora local de quintas de cultivo e criação animal.
Era o segundo da fila. Com um bom dia cumprimentei o motorista e sentei-me no segundo banco à direita, junto à janela. Não tinha livro para ler. Peguei no jornal. Já ia preparado para uma longa viagem.
Pelo meio, entre vidros embaciados o trânsito rolava lento. Utilizei o cortinado da janela para limpar o vidro da humidade acumulada. Se calhar fiz mal. Paciência. Fiz um espacinho suficiente para ver o passeio e as pessoas.
Um tipo…ou se calhar era uma senhora (!), ressonava uns dois bancos mais atrás, com intermitências mas a bem ressonar. O que vale é que era na fila do motorista e que não era eu que ia ao seu lado. Grande sorte!
Pessoa que saem e outras que entram – Só três pessoas, só três – Manda o motorista, da boca para fora, à laia de pastor da lezíria em direcção à porta. Tinha-se fartado de tossir, sempre com cara de enjoado (sim…porque do meu lugar dava para ver o senhor!), e talvez por isso estava mal disposto. Ou isso, ou foi uma mal dada. Volta na cama.
A ressonância parava assim como começava. E o trajecto foi longo.
O Sting cantava na rádio e um inesperado lamiré prolongado, do tipo “mm”, surge no banco logo atrás de mim.
(ironia) Grande sorte! Tinha logo de calhar atrás de mim alguém contente! O “mm” foi interrompido por um telefonema da filha, a Sandra que pelos vistos tinha arranjado um local de estágio – Ai, que bom! E é remunerado?
Mais umas páginas do jornal e o ressonar nota-se de novo.
O murmúrio continuou até novo telefonema, desta feita para a “mana”. Não podia ir lá ter com a mãe, mas ao que parece não havia problema. Estava tudo bem.
Pensei que não ía haver nova sessão de felicidade. Enganei-me. Não tenho nada contra as pessoas…contentes. Tão pouco sou triste. Mas, como muitos outros, estava a espera de uma viagem…silenciosa e até tive direito a ressonância. Também muitas vezes tive vontade de cantarolar, só que já sabia que se o fizesse, iria ser conotado como – Este é maluquinho! - Dai, afim de evitar comentários, é no carro que o faço ou em casa. Assim, só os vizinhos ouvem! Grande cena!
O rádio debita mais uma música e o murmúrio não se fez esperar. – “Mm” … “mm” … “mm” – Toda contente. Parece que a conseguia ver: os pezinhos apoiados nos calcanhares, a subir e descer à vez, a cabeça a balançar de um lado para o outro e as mãos entrelaçadas no colo, subindo e descendo ao ritmo. Um sorriso estúpido compunha o ramalhete. A música era boa mas o coro não estava à altura.
Paciência.
Na rua, as pessoas andavam mais depressa que o “alternativo”. Era engraçado e natural. Optavam por ir a pé porque chegariam mais rapidamente ao seu destino.
Cheguei à última página do jornal. Só me restava encostar a cabeça e fechar os olhos, à espera que o tempo passasse. Sabia que não era para dormir. Só faltava que o homem ao meu lado começasse a meter conversa comigo. Já agora!...como se vê nos filmes quando alguém se senta ao lado de outrém, acomoda-se, respira fundo e olhando para o passageiro do lado, solta com um sorriso – Bom Dia, o meu nome é Inácio. – Estende a mão e… e nada porque não tenho ou teria paciência para isso. Fico com o estômago aos nós, só de pensar nisso. Argh! Como se não chegasse a respiração pesada e entupida com que me presenteou, quase desde o principio até quase ao fim. Credo!
Por momentos, tive a sensação de ter sonhado. Acordado, mas sonhado. Tudo girava à minha volta; era bom. Pelo menos não estava ali. Mas estava!
Um velhote levantou-se para sair no Marquês, na segunda vez que parou, isto porque tinha parado antes da paragem para as pessoas saírem. Pois levou a mal o velhote ter-se levantado – Então mas eu parei! E o Sr. não saiu! – Com uns olhos de boga e boca também – Devia de ter saído! Agora sai por detrás, se faz favor! – O velhote, coitado, dirigiu-lhe um – Ó senhor, eu não sei onde é. – E dirigindo-se para a saída das traseiras – Não precisa de se chatear comigo que eu tenho idade para ser seu avô! – disse num tom calmo e arrastado e saiu.

Faltava pouco, era o que valia. A ressonância deu lugar à lucidez.
Agora nem foi preciso dizer quantas pessoas podiam entrar. Tossiu com mais insistência.

O Rossio estava (mais) próximo. Era o que valia.
Saí sem o cumprimentar. Lá fora, voltei a encontrar o frio cortante. Deu para despertar. Ainda demorou um bocado para os meus joelhos aquecerem e pararem de se queixar.
Havia pouca gente na rua.

Mais uma greve, mais um dia.

Até à próxima…

terça-feira, janeiro 02, 2007

Fé e Religião

O nascimento de Cristo foi um momento deveras importante na formação de (novas) mentalidades.
A ideia de um ponto único em torno do qual tudo e todos giram, se regem. Uma tentativa de unificação humana em torno de um ideal. “A fé move montanhas”, foi e continua a ser uma frase fulcral para o enriquecimento de uma crença. A ideia de “algo” não-humano, superior ao Homem, é ou era essencial para um maior fortalecimento da crença.
O Divino. Atingível apenas pela crença, fé, obediência nua e crua, sem questionar fosse o que fosse.

Como surgimos, de onde viemos, nós e tudo o que nos rodeia, as pedras, as nuvens, o mar, as árvores, montes e montanhas?

Já antes do nascimento de Cristo, existiam crenças e Fés, muito antes:
- Deuses e deusas, o culto da Mãe-Natureza faziam parte do universo das gentes de então. Todas elas preconizavam a existência de algo “não-humano”, superior, umas mais brutais que outras, mas tendo sempre o mesmo fim: explicar o porquê das coisas serem como eram; explicar o incompreensível.
Dai, à ideia de controlo de gentes, vai um pequeno passo, muito pequeno mesmo – Crê que serás recompensado. Obedece e serás recompensado.
A cristianização do mundo romano é, a meu ver, exemplo disso.
Uma Fé que alastrava com uma força enorme, opunha-se a uma outrora enorme força e fé: a romana. Tornava-se cada vez mais impossível contrapor. O Imperador Constantino, terá então utilizado o tão conhecido ditado – “se não os consegues vencer, junta-te a eles”. O que custava tornar-se cristão? Continuava na mesma a ser o Imperador; não terá contudo, fugido da sua mente, a última parte doutro também célebre ditado – “…mantém os teus inimigos, mais perto ainda de ti”. Durante muito tempo, coabitaram ambas as religiões.
Controlo.
Consoante as raças, a ideia de controlo e / ou Fé, prevaleceu, cada um à sua maneira. Para uns foi Maomé, para outros Deus ou Cristo ou Shiva, Confúcio ou outro que não me lembro neste momento.

Para mim, venha quem vier por bem, seja este um ensinamento tirado de onde tenha vindo; simplesmente porque faz sentido.

Crenças e tradições, andam de mãos dadas. Os hindus não comem vaca porque é um animal sagrado; os muçulmanos não comem porco porque é um animal impuro; os cristãos são como são porque foi assim que lhes ensinaram e os chineses também.
Cada um é como é e faz sentido desde que não haja desvios. Os desvios surgem da necessidade de controlo e gestão de Fé.
Pode parecer duro e cru, mas é a verdade.

Porque não poderá ser possível simplesmente Acreditar e Aceitar que o outro seja como é, sem Obrigá-lo a aceitar outra coisa?
Não!
O desejo de Controlo, Poder, crescia como erva daninha. E era bom!

Tem-se o exemplo (mau!), da Inquisição, das Cruzadas contra o árabe “Pagão”, só porque acreditavam e professavam uma fé diferente. A Entifada (peço perdão se estiver mal escrito!), contra o “Infiel” cristão. Os Descobrimentos também são disso um exemplo com a cristianização forçada dos nativos. Todos lutavam “Por Deus!”.
Na Europa, a promiscuidade entre governantes e igreja católica era brutal. O Poder tinha tudo e obtinha o que não tivesse; alianças faziam-se e quebravam-se com o estalar dos dedos de uma mão.
Assim se escreveram páginas de História, com a sede de Poder em nome da Fé.
Como se a Fé pedisse sangue! Quem o pede ou quem o reclame, não é crente – é fanático!
É o Poder.

Os reis eram os representantes de Deus na Terra. As alianças com a igreja católica foram cruciais para a continuação e implementação do seu poder; a Fé era factor secundário, numas coisas porque noutras tinha papel fundamental como meio de controlar os inimigos…do poder, não da Fé.
Após longas sessões de tortura, qualquer um confessava o que quer que fosse, sendo então os tidos hereges e as bruxas queimados vivos na fogueira.
O Poder Pode Tudo!
Quando a situação não corria a favor deste ou daquele governante, o apoio divino continuava (sempre foi), preponderante. Surge o Anti-Papa.
Tudo a seu belo prazer.

Não sou contra regras ou contra as Leis, mas aceito que cada um acredite no que quiser, que tenha Fé em “alguém” humano ou divino. (Terei para isso, talvez criado as minhas próprias regras ou Leis; não sei). Talvez.

O Poder comanda tudo.
A Fé não comanda nada…ou se calhar até comanda!
“Comanda”, é capaz de não ser o termo certo e daí…sim. Comanda os pobres de espírito que acham (empurrados por outros), que só assim encontram as respostas para as suas perguntas e necessidades. Os outros, os que empurram são os inteligentes, só porque se aproveitam deles. Gostam do Poder sobre os outros. Seitas surgiram, ditando as suas Leis, chamando para si os tais “pobres de espírito”. Critico todos e se calhar, não critico ninguém. Difícil. Porque é sempre Mau, aproveitarmo-nos dos “pobres de espírito”. Milagres existem (ainda não presenciei nenhum, mas gosto de acreditar que existem), ou poderão ser Coincidências. Males regridem e desaparecem.
Se alguém é capaz de os fazer, não deveria publicitar o facto. Devia de fazer, apenas. Em troca, um sorriso bastava.
Era um Lucro Bom.
Jesus Cristo terá dito, “vinde a mim as criancinhas, os pobres e os necessitados, pois deles será o Reino dos Céus” (se não for assim, mais uma vez peço perdão, mas a ideia percebe-se (para o mínimo dos inteligentes)). Não sei se seriam estes por alguma inocência que estivesse inerente à sua condição, mas parece.

Mas não aceito!
Aceito, sim, que irá para o Reino dos Céus (um lugar bom, melhor sem duvida do que ir para o Inferno), quem pratique o Bem e Acredite em algo ou alguém bom. Que tenha Fé, se for mais compreensível assim.
Para mim, Jesus Cristo existiu como UM HOMEM BOM, e se me for permitido (ai de quem disser que não!), acredito assim nele. Filho de Maria e José, e não de geração espontânea, capaz de ter amado quem quer que tivesse sido e que, de certeza, viesse por bem. Ter Fé, Acreditar em “algo” assim é mau? Todos somos capazes de coisas, atitudes boas e de outras menos boas ou más. O que sabemos da história de vida de Jesus Cristo é um rol de coisas e atitudes Boas, mas impossíveis de ser realizadas por um filho de…humanos.
Há pessoas BOAS. Não é possível conceber sequer que outro tipo de atitude ou conduta possa ter sido exercida por ele. Não falo de algo de mau, mas que tenha sido de menos bom. Natural no ser humano. Sim, terá sido possível, mas de maneira nenhuma aceitável no conceito que se pretendia criar de que tudo tinha uma razão de ser e tinha de ser assim sem possibilidade de contrariar. “Deus escreve certo por linhas tortas”.
Tem de se aceitar, ou aceita-se, que Deus quer o Bem do Homem e que o Homem o pratique (para poder ascender ao Paraíso, um lugar bom), porque se não o fizer vai para o lugar mau (O Inferno), onde a sua alma será consumida e o corpo despedaçado vezes sem conta, 24 horas por dia, 365 dias por ano.
Mas como será possível aceitar que “se Deus quiser”, e quando o quiser, levará quem quiser para o seu seio? Tirar alguém que é amado, querido, de outrém?

Não são linhas tortas. São linhas tortuosas.

O Destino, o nosso Fado é o que for ou aquilo que nós quisermos. Talvez uma das minhas Leis:
- Se tivermos Querer, conseguimos, mas só se Quisermos Ter Querer. Outras, podemos adaptar à nossa realidade ou tomá-las tal e qual como são. “Não faças a outro o que não gostas que te façam a ti”. Será a Lei dos Homens (ou de cada um, igual a muitos), “Se te fizerem mal…não dês a outra face. Faz pior!”. Se é correcto ou não…depende de cada um e da sua capacidade de raciocínio. Vale a pena?
A Vingança é um prato que se serve frio (desde o inicio dos Tempos).
Pensar as coisas dá trabalho, pode ser difícil e porventura tortuoso de fazer, e muitas vezes não pensar é a atitude mais facilmente tomada.
Siga.
Foi-nos dada a capacidade de Pensar e por conseguinte Evoluir. Para o Bem e / ou para o Mal. Cabe-nos a nós:
- Ouvir, Assimilar, Aceitar a “não-concordância”, Acreditar, Não acreditar. Observar. Ser. Humano.

Ser, nós próprios, onde e quando quisermos e que ninguém nos diga o contrário. Ser saudavelmente tresloucado. Ter “a dose certa de Loucura”. Loucura Saudável. Fazer aos outros o que gostávamos que nos fizessem. Venha quem vier por bem, porque quem não vier por bem…se calhar leva!
Tudo porque o que gostamos é de estar sossegados. Uns com os outros e por vezes sozinhos. Quem gostar, gosta, e quem não gostar…que coma só as batatas – é mesmo assim!

Há quem acredite que “algo” Superior a nós existe, algo Bom.
Porque existe o Bem, existirá o Mal.
Se, e quando vier…a gente trata dele! Se vale a pena pensar nisso? Há tanta coisa em que pensar…!
Acreditar, sem querer forçar ninguém ao mesmo.
Cada um é como é, desde que ninguém nos chateie.
É preciso não complicar o que já por si não é fácil. Desde que começámos a respirar e a berrar ao mesmo tempo.
Querer Pensar é preciso. Fazer rapidamente algo que for muito chato de fazer, porque mais depressa vê-mo-nos livre dele.

Acreditar em nós. Quem o fizer depois, fá-lo-á em segundo lugar. Será mais um que vem e nos quer Bem.

Viver um minuto de cada vez. E que seja bem vivido e partilhado.

O Tempo passa e desde que comecei a escrever já algum tempo passou. Mas o que importa é se foi bem aproveitado.
Eu sei!