quarta-feira, março 05, 2008

Um dia na vida Real

Acordei com a paz do Senhor.

O cheiro suave dos lençóis acompanhou-me na jornada pelo reino dos sonhos. A luz penetrava pelas portadas da janela juntamente com o chilrear dos pássaros e as vozes de pessoas lá em baixo no pátio.
Na cama ao lado, a minha Dama dava ao novo dia os primeiros sinais de agradecimento pela noite bem dormida. Saí da cama, calcei os chinelos e sentei-me à beira da sua cama acariciando-lhe os cabelos, sussurrando-lhe “ Já é manhã, Meu Doce. Temos de nos levantar.” Abriu os olhos e sorriu-me; melhor começo de dia não podia haver.
O pequeno-almoço seria servido na sala de baixo.
Era altura de nos levantarmos, os nossos deveres aguardavam-nos. Refresquei-me e lavei-me na bacia e coloquei as minhas vestes. Abri a porta para sair, ao mesmo tempo que a minha Dama o fazia do outro lado. Sorrimos um para o outro.
De mão dada descemos e dirigimo-nos à sala para o pequeno-almoço. Ao entrar na sala, recebemos os bons-dias da Maria, nossa criada à qual retribuímos. Sentámo-nos e demos inicio à refeição.

Lá fora, a vida na Vila começara à muito e enchia as ruas com o frenesim habitual com os habitantes a negociar. O Sol beijava as muralhas e estendia-se lentamente pelas ruas e campos de cultivo circundantes da Vila. Era o reinício do Ciclo do Dia; aqui a noite não era sinónimo de recolher obrigatório. Havia a vigília habitual nas ruas, para além das sentinelas nas muralhas. As tascas e tabernas fervilhavam de excitação com músicas e conversas de tagarelas e de negociantes, estes acabados de se escapulirem de casa sem as suas senhoras darem por isso. As horas eram assinaladas como sempre o foram e também, por vezes, com algum tempo de diferença entre elas, o que não era de estranhar dado que durante o trajecto era efectuada uma ou outra paragem numa tasquinha “para ajudar no frio da noite”, como fazia questão de salientar ao balcão. O homem sofria repreensões pelos atrasos que geralmente resultavam e duravam no máximo noite e meia.
Durante a noite era natural um ou outro desacato prontamente resolvido ainda antes da patrulha chegar ao local e apenas os casos mais graves chegavam ao Concelho para apreciação.

Saídos para a rua, a minha Dama e eu cumprimentámos o quente sol matinal, sorrimos um para o outro e dirigimo-nos para o Concelho. Para além dos assuntos habituais que o Alcaide tratava, eu acumulava também a Questão de Disputas. A resolução de disputas é uma das obrigações do Senhor da Vila, conjuntamente com a aplicação das Leis do Reino e a cobrança de impostos.
Naquele dia esperava-me a situação entre dois vilões acerca da morte acidental de uma cria de bezerro, numa armadilha para lobos colocada por um dos vilões num dos terrenos de pasto comuns, junto ao rio que abastecia a Vila de água. A cria não falecera devido à pata presa na armadilha mas sim pelos seus mugidos de aflição terem atraído os lobos que perante tal cenário não se fizeram de rogados.
A existência de pastos comuns à Vila, resultou de uma deliberação minha, dada a conhecer em edital postado e lido nas ruas da Vila e inclusivamente lido durante a noite nas tascas e tabernas pelas patrulhas da noite. O propósito era evitar a dispersão dos animais, apesar dos campos de responsabilidade própria dos vilões, numa altura em que os ataques de lobos se começaram a intensificar. Fiz notar que era o Bem-Comum que estava em questão, para além das próprias vidas dos animais, sustento dos vilões e da Vila; e que perante um ataque de lobos qualquer vilão teria assim apenas que se preocupar com a protecção da sua vida, podendo dar-lhe toda e a máxima atenção.

O Concelho não ficava longe da residência. Era um trajecto curto, cobria parte da Rua Principal, apenas efectuado em carruagem quando o estado do tempo a isso obrigava. Era um trajecto agradável pela calçada e um meio de interagir com a populaça, bons-dias com vénias trocados por algumas palavras sinceras e um sorriso.
Chegados ao local, a minha Dama e eu levávamos caminhos diferentes: eu dirigia-me à minha sala contígua à Sala das Audiências e Decisões, inteirando-me com o meu secretário dos assuntos do dia; já a minha Dama tinha como responsabilidades o que respeitava a provisões e mantimentos.
A ideia partira da minha pessoa, afim de lhe atribuir algo que a ocupasse e a tirasse da monotonia dos assuntos da residência. Sei que os seus afazeres em casa não iriam diferir muito das novas responsabilidades mas tendo em conta as proporções, era sem duvida algo bem mais interessante, colocando-a em contacto com diferentes pessoas. Uma das principais razões tinha também a ver com o facto de confiar na pessoa com quem se trabalha. Avancei com a ideia, uma altura ao jantar após um dia que não me havia sido muito favorável na saúde, causando-me uma ligeira enxaqueca – O Responsável das Provisões e Mantimentos vinha à algum tempo a manter um nível de incoerência no tratamento aos vilões, fazendo também cobranças em seu proveito. Quem melhor que a minha Dama para o cargo! Aceitou a responsabilidade apenas com uma condição à qual acedi de imediato:
- O proveito que tirasse do cargo seria aplicado em algo que apelidou de Fundo de Apoio para a Vila, para situações de emergência, catástrofes naturais e também pessoais. A minha decisão foi imediatamente comunicada em edital, postado e lido nas ruas e tascas e tabernas durante a noite.


As partes em disputa já se encontravam na Sala das Audiências e Decisões e também alguns nobres da Vila e população. Depois de me inteirar da situação na minha sala com o meu secretário, entrei na sala anunciado pelo meirinho e sentei-me dando início à primeira sessão do dia. Após o anúncio à sala da questão pelo meirinho, pedi os nomes para registo de acta e inquiri primeiro o queixoso e depois o meliante. Decorreu tudo com a normalidade habitual tendo a resolução da disputa sido a seguinte:
- “Fica registado em acta, no dia 29 de Fevereiro do Ano do Senhor, a seguinte decisão do Alcaide da Vila, Dom Fernando, Augusto dos Santos Palos.
O vilão que colocou a armadilha causadora da posterior morte da cria, fica apartir deste momento obrigado à cedência do seu animal de cobrição durante o tempo que for preciso ao queixoso até que o resultado visível seja uma das vacas ficar prenha, momento o qual o animal de cobrição será devolvido ao seu dono. Durante esse tempo é entregue ao queixoso diariamente, uma quantidade de alimentação a determinar para o animal de cobrição, afim de evitar ainda mais o prejuízo do queixoso.
Os presentes aceitam esta decisão sem contestar, assinando ou deixando a sua marca pessoal.
Tenho dito.”

Uma patrulha foi encarregada de fazer cumprir acompanhando queixoso e meliante.

Por vezes, num ou outro dia, tirava a parte da tarde e passeava pelas ruas da vila, apreciando o dia-a-dia dos vilões. Algumas vezes era convidado a entrar sob o pretexto de descansar as pernas. Perante a oferta de uma merenda para aconchegar o estômago, era pedido o meu conselho ou era apresentada uma determinada situação que eu ouvia sem hesitar. Dependendo do assunto, encaminhava-os para os respectivos departamentos, garantindo ser a melhor forma de resolução.

Já em casa, após me refrescar, reencontrei a minha Dama. Sentada na sala, entregava-se aos prazeres da leitura junto da janela, bonita como sempre. Cumprimentei-a com um beijo e sentando-me na cadeira à sua frente, iniciámos a conversa de fim de tarde, abrangendo desde assuntos do Concelho intervalados com situações banais. Esta conversa amena durava geralmente até ao momento em que o criado anunciava o jantar.
A tarde passou.
O Sol dava lugar à Lua.
O Ciclo do Dia entregava a vida na Vila ao fresco da Noite.
Novos personagens surgiam e ocupavam os seus lugares, novas situações para resolver, talvez sim, talvez não.
As horas começavam a ser anunciadas. A horas. Era uma questão de horas para saber se duravam a noite inteira.

A vida na minha Vila.

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