quinta-feira, março 01, 2007

…era uma vez um estábulo.




Como todas as histórias…


…era uma vez um estábulo.

Era um estábulo muito grande e fazia parte de uma quinta igualmente grande que se chamava Quinta da Piedade. O nome talvez fosse o apelido da família proprietária, mas adequava-se mesmo bem àquela quinta, porque lá os animais viviam até ao fim dos seus dias.
Para quem olhasse de longe, não era uma quinta como as outras. Não se produzia nada que se visse, não havia criação de animais sequer para venda, nem tão pouco abate. No entanto, o corrupio animalesco era grande, entrando de tempos a tempos novos animais, não necessariamente diferentes dos que já lá estavam em aspecto ou porte mas apenas novas aquisições. Adicionavam-se espaços para melhor os acomodar e pronto… lá ficavam eles. Passavam os dias em conjunto.
A integração não era difícil. Todos eram bem aceites pelos residentes. Faziam a sua vidinha em conjunto. Não haviam tarefas atribuídas. Estavam ali, mais nada. Que bom.
Está bem… talvez não seria só assim! De toda a criação, haviam uns mais velhos que outros. Sempre que algum outro animal se saia com uma tirada, assim um tanto ou quanto “à selvagem”, era aconselhado a refrear os ânimos e posto de castigo no cimo do monte mais distante, aos coices no ar, de costas para o estábulo. O castigo seria adequado ao animal em questão, caso não fosse apetrechado de cascos, por exemplo. Convenhamos que seria difícil pôr uma avestruz aos coices no ar, não possuindo cascos, mas a ideia tinha adaptações humilhantes, como por exemplo pôr uma avestruz aos coices no ar e a zurrar. Humilhante sim, pois para quem não saiba uma avestruz não zurra.
Os mais velhos aplicavam os castigos, não necessariamente aos mais novos, como a outros da mesma categoria. A idade é um posto e “mai nada”, mas nem para todos! Eram eles que acolhiam os recém chegados, atribuíam os espaços e quem os iria acompanhar para sempre ou apenas durante um determinado período de tempo. Daí, não ser normal a quem olhasse de longe, ver uma pata brava, a acompanhar uma rata do campo ou uma vaca leiteira lado a lado com um ganso fêmea, passeando na erva verde e rasa. Pelo contrário, um cavalo em correria louca na planície com uma égua, nada teria de estranho.
Mas a vida corria. E roçava por vezes a loucura divertida. Por vezes a balbúrdia ouvia-se à distância, sons transportados pelo vento através dos montes e vales. Cada um ria-se e brincava com as estapafurdices do outro. Era rir até espalhar a baba pelo chão e chorar a rir quando o burro velho passava, pisava e escorregava, caindo de cu a deslizar como um pião.
Um rio de baba tem esse efeito! Faz rir ainda mais a malta.
O dia começava cedo, típico da vida numa quinta. Mal o Sol raiava, o galo cantava. O pessoal abria uma pálpebra de cada vez, espreguiçava-se e dirigia-se ao bebedouro para lavar o focinho, bico, penas, pelo, bigodes e cascos, conforme o animal. Posteriormente, deslocavam-se ao lago Maior afim de lavar ao pormenor as partes. Higiene acima de tudo. Até para os porcos; estes tentavam disfarçar o cheiro natural, esfregando ervas daninhas nos sovacos, só que a maior parte das vezes saia-lhes o tiro pela cu… perdão (engasgo!) … pela culatra, uma vez que os cães já lá haviam urinado antes.
Cães danados! É a vida!
Após a limpeza e já nos seus postos, recebiam a visita do costume da porca de serviço. Há sempre uma em qualquer lugar. O resto do dia era passado na conversa, séria ou na galhofa. Jogos de cartas também havia, fosse sozinho ou com mais pessoas. Na cave por detrás do estábulo, decorriam os jogos mais a sério: póquer e roleta. Ninguém gostava de jogar com o furão; o fuinha portava-se como um… fuinha. Sempre que tinha oportunidade, fazia batota e quem não estivesse com atenção, perdia e tinha de lá deixar a pele. Difícil, talvez mas fica a ideia.
Quando a galhofa parava, imperava a inépcia e o ócio. Ficava tudo a ver as moscas a esvoaçar, mais ao pé de uns que de outros. O cheiro, talvez! Por vezes surgiam as “fofocas”; inevitável. As galinhas então… do piorio! Minavam tudo, com todos.
- Alguém reparou no barulho que os coelhos fizeram ontem? Caramba… já não bastava durante o dia, de manhã à noite! Agora é também da noite até de manhã. Devem de andar a comer daquela erva marada, lá do pasto norte!
Alguns concordavam, enquanto outros olhavam para o lado e sem dar nas vistas, tossiam e assobiavam fingindo distracção. As patas ajudavam à festa, dizendo que estava na altura de se fazer alguma coisa. Desta feita o problema não era os coelhos, mas as ratas do campo.
- Aquelas, como se já não chegasse o delas, ainda fazem mais buracos por todo o lado. No outro dia pus lá uma pata!
Logo de seguida, ouve-se uma voz fininha e rouca, da rata:
- E quem mandou tapar assim o meu buraco sem pedir licença? O buraco é meu!
Os presentes olharam ao mesmo tempo para a rata e de seguida para a pata, esperando a resposta.
- Um dia eu ponho lá é outra coisa! – Responde com um ar muito zangado, a pata.
- Aah, sua porca! – Exclama a rata, de boca aberta.
- Posso saber… óinc, óinc… porque é que me estão a meter na conversa… óinc?
– Pergunta a porca, ao que respondem em uníssono – Cala-te, animal que tu tens um passado triste! Xô… passa!
O resultado foi uma pequena discussão animalesca sobre o direito da rata em ter o buraco aberto onde quisesse, da pata em pôr ou não lá a pata ou outra coisa qualquer, mesmo sem pedir licença, uma vez que era isso mesmo que a rata fazia – andava sempre com o buraco aberto sem mais quê, e o direito da porca em cheirar assim, qualquer que fosse o seu passado, alegre ou triste, ninguém tinha nada haver com isso – é seu e de mais ninguém, mas que afinal não seria bem assim, porque quem cheira assim tão a urina de cão, não é bom da tola – Será que não dão conta, caramba? Aquilo nem é transpiração… é urina de cão!
Ao longe os cães espreitavam – Porra, fomos descobertos! Temos de encontrar outro lugar para urinar.
- E que tal se for atrás do estábulo?
- Atrás do estábulo está um monte, criatura…! Depois vai tudo a escorrer lá para dentro e é pior, não?!
- Qual quê? Junto à parede é o lugar das galinhas e onde comem o milho. He! He! He!

- Ainda vão pôr ovos amarelos… Aí na pá…! Ficam logo ovos para a Páscoa! – E desatam a rir que nem uns doidos, deitados no chão a espernear e a uivar.

É mais ou menos assim, a vida no estábulo. Uns dão-se bem, outros nem tanto. Mas falam todos uns com os outros.
À hora de almoço é outra rebaldaria com todos a conversar ao mesmo tempo. Nem o facto de, quando o tempo está solarengo, fazerem todos um piquenique no prado em frente ao estábulo. Não dá para ser na parte de trás porque urinam lá os cães e é inclinado e não dá jeito. Trocam comida entre si, menos com a porca e a rata, e irritam-se quando os coelhos começam no “truca-truca”, ainda antes sequer de abrirem a marmita.
- Oh pá… Qué qué isso?! Olhem a comida…! Arranjem um quarto…! – Gritam em coro.
Cada um fica ao pé dos acompanhantes e todos estes juntos numa roda-viva, na conversa.

A tarde é passada como a manhã. Com mais ou menos movimento pelo ervado; a instrução dos mais novos segue o seu ritmo, enquanto os outros fazem o que têm a fazer – falam e enxotam as moscas. Por vezes, recebem a visita surpresa da Sr.ª Dona Piedade, que de surpresa não tem nada porque o garnizé está sempre de pescoço ao alto à espreita e avisa logo. Conta, para isso com a colaboração dos ratos lá da casa que em troca de comida, passavam informações. Ratos danados!
A visita resume-se a passear pelo estábulo e pelas imediações, cumprimentando todos e verificando as instalações; tinha tudo de estar num brinco! Tal tornava-se difícil na parte das porcas. Na parte dos galináceos, estranhou o facto dos ovos saírem amarelos – Pintos chineses? Deve de andar aí um intruso na Quinta! Mas pelo menos há ovos para a Páscoa! – Os cães riam que nem uns doidos. Volta e meia, ao passear lá fora, pôs o pé num buraco da rata, caiu e ficou toda suja. – Maldição! - Por esta altura, riam todos às escondidas, menos a porca e algumas galinhas que corriam a acudir.

Pela tarde fora, lembravam a visita e riam novamente que nem uns doidos. A normalidade regressava ao estábulo quando o garnizé avisava população de que a Sr.ª Dona Piedade regressava à casa.
Como é linda a vida no campo.

P.S.: Garnizé é um galo pequeno.

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